a primeira memória, de entre todas
um combóio para Aveiro e a avó a tirar a tampa do copo de leite com chocolate para eu beber à janela
a primeira, segunda e muitas de todas as seguintes
memórias da infância passada com os avós
das férias em Lisboa em que os fazia correr a Baixa para encontrar sobremesas de ovos moles, das feiras onde comprava livros da Anita em segunda mão, da cidade percorrida de ponta a ponta, das noites em que íamos à Revista e eu me fascinava com o espectáculo de plumas e luz, com a noite em que íamos à Feira Popular e eu saltava em castelos insufláveis até chegar à lua, das visitas às "primas" a quem eu fugia dos beijos repenicados, das tardes de praia no Estoril com o avô a olhar-nos da esplanada, sem nunca por um pé na areia.
saudades dos dias passados em casa, das receitas feitas a meias com a avó, de brincar às mercearias com a balança antiga com dois pratos e pesinhos, das roupas feitas para as bonecas, da fabrica de bolos feitos de areia, da aletria que o avô fazia sempre com açúcar para lá da conta, do avô a praguejar para a televisão sempre que apareciam pretos ou o Cavaco. Ainda hoje ainda levanta uma mão com ar zangado sempre que vê aparecer na tv o nosso presidente... das histórias antes de dormir pedidas vezes sem conta "conta-me mais uma historinha do meu pai!!!"
das matinés de cinema com o avô e dos intervalos passados a correr e a rastejar entre as cadeiras, tanto que o avô ficava atrapalhado e desistia de me tentar sentar. das outras idas ao cinema com os avós ver filmes de gente grande em que não percebia quase nada e a avó me contava a história baixinho. do cinema paraíso, que vou associar sempre ao avô.
dos passeios no parque, em que levava a saca de pão para atirar aos patos e às pombas. das idas ao Palácio de Cristal para ver o macado e os pavões.
da colher de sopa que era sempre a mesma, do doce de abóbora que só eu é que gosto na familia. de tudo isto ainda hoje.
do orgulho dos avós sempre que as notas saíam
do sorriso nos olhos sempre que eu chegava
sempre que eu chego
mesmo hoje
quando já tanta coisa mudou
tão repentinamente e para sempre
com o avô a lembrar-se de mim só com os olhos, que continuam a brilhar
e com a avó a querer que ele se lembre de mais e a lembrar-lhe histórias ao ouvido
o avô sem passado, só com o presente, minuto a minuto. e a avó a quem foi roubado o presente e que ficou apenas com as memórias do passado
e com alguns segundos, em que o avô me diz meio aflito que estou uma mulher e que não posso arranjar um desses homens malucos que me faça mal. e em que diz que sou a coisa mais bonita deste mundo.
e em que eu,
aos olhos dele,
acredito.
21 julho, 2007
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7 comentários:
muito bonito o texto, o teu avó e tu!
Amei...
Também tenho muitas memórias semelhantes.. mas ainda não as consigo relembrar sem ficar triste... Como já disse uma vez.. saudade é bom, mas dói p'ra caramba...
PS: Miuda, até amanhã!!!!
Espectáculo! São estas memórias que nos dão a cor da nossa vida! Poderíamos até viver eternamente, mas estas memórias de carinho ficam p'ra sempre!
Aproveitei enquanto lia p'ra recordar também um bocadinho! Faz bem!
;) baci
Se "pelos frutos se conhece a árvore"... os "olhos dele" vêem bem.
muito muito bonito...
lindo post!
escrito divinalmente... adequado ao tema!
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